Já que Lacan morreu...
por Jorge Forbes para o jornal O ESTADO DE S.PAULO em 24/9/1991
Jacques Lacan morreu em setembro, como Freud e também Melanie Klein. Será que os grandes psicanalistas ficam mais frágeis nesse mês, depois de brigar com as bruxas de agosto?
Há exatos dez anos Jacques Lacan morreu. Ele não foi um discípulo de Freud como os outros – até, diríamos, foi contra os outros. Em seu retorno a Freud, à virulência da descoberta psicanalítica, ressaltou os impasses entre o homem e a civilização, entre o desejo e as satisfações possíveis, entre a palavra que se quer e a que se tem. Não deu resposta acomodativa a esses impasses como seus predecessores, mas arregaçou as mangas, encarou o problema e, num decidido vamos lá, demonstrou que o conflito entre o homem e a cultura não é acidente de percurso, mas de sua natureza. E isso não é mau, ou melhor, não deve ser mau para aqueles que toleram na receita da vida uma pitada de incerteza que muda o gosto das saladas de garantia.
“ Decidir-se na incerteza” pode ser um bom lema para uma bandeira psicanalítica.
Lacan, como ninguém, soube ser bandeirante do inconsciente. Sem cavalos, sem botas, sem gibão, mesmo sem tropa, teve como arma sua inquietação, que chamou de ética do desejo, e como instrumentos, seu silêncio atrás do divã e sua fala diante de um grande público.
Um homem contemporâneo: para provar o arbitrário da língua, partiu da Lingüística. Para provar que o inconsciente pensa, usou Matemática e Lógica. Para provar que herdamos, além de genes, também gostos, maneiras, tradições, recorreu à Antropologia e, para o grande debate sobre o homem e o mundo, teve longas conversas com Kant, Hegel, Heidegger, sem esquecer os antigos. Luzes e mais luzes na Psicanálise.
Se Psicanálise é ciência, ainda se discute, mas com Lacan, certamente, não é ciência oculta. Ele teve a ousadia de derrubar duas resistentes barricadas das cartilhas analíticas: seus seminários eram abertos, sua prática clínica desritualizada. Provou que a famosa transferência – as emoções deslocadas que o analisando sente por seu analista – não se extinguia ao ver o paciente seu analista em público, trabalhando, pensando, emitindo opiniões, com raiva, com carinho. Quebrando os rituais públicos e privados colocou na mão dos psicanalistas a responsabilidade de dirigir uma análise nesse mundo , e não no mundo perfumado e asséptico do britânico setting. Ele pôs a análise em pé, atenta às diferenças e não às igualdades. Estendeu as fronteiras da clínica, pôde escutar onde os padrões ensurdeciam, casos rebeldes passaram a ser casos tratados.
Na formação dos analistas também inovou. Quem é analista? A régua que mede o engenheiro, o médico, o advogado e cia. não serve para o analista, como também não é válido o terço da fé que qualifica os religiosos. O analista se mede na prova que oferece de ser capaz de levar o saber ao seu limite, ao impossível; o amor à diferença radical; de impedir que a norma pulverize os detalhes do desejo. E deve fazer tudo isso sem ficar à margem, sem gozar da marginalidade (no duplo sentido). Nem a Academia nem a Igreja servem ao psicanalista. Sua instituição é a práxis cotidiana que se mede só por sua eficácia transformadora, de um a um. Cabe às escolas psicanalíticas saber recolher, transmitir e garantir essas experiências do particular.
Marshall McLuhan, o grande teórico das comunicações, definiu que “o meio é a mensagem” – mais importante que o que temos a dizer passou a ser o veículo utilizado. Falar no rádio como o rádio quer, aparecer na televisão como a televisão quer, escrever no jornal como o jornal quer. Lacan resolveu seguir a lição ao pé da letra e, ao fazê-lo, mostrou o absurdo que se esconde em toda ordem unida. Solapou o meio em sua própria mensagem. Foi à televisão e chamou o seu programa de Televisão, foi ao rádio e publicou a entrevista sob o nome de Radiofonia, escreveu um grande livro e intitulou-o, simplesmente, Escritos. Seus 26 seminários, um para cada ano de seu ensino, chamam-se Seminários. Sufocado pela armadura massificante da mídia, soube detectar os respiros da criatividade. O meio ainda não é a mensagem toda, os atores são fundamentais. Por isso se comemoram os dez anos da morte de Jacques Lacan, ele é fundamental.
A Psicanálise não sobreviveria sem os grandes analistas. Essa afirmação pode chocar o homem da ciência que pretende que a fórmula prescinda do autor. Pode falsamente alegrar o intuitivo que quer fazer de sua paixão uma verdade universal. Não, nem uma coisa nem outra.
Será analista, quem souber se equilibrar na ética do desejo. Se cair para um lado fará o sujeito desaparecer no discurso da ciência, se cair para o outro lado fará seu enaltecimento místico. Aí está uma difícil virtude: equilibrar-se nesse meio.
Já que Lacan morreu, para ser Outro enfim, como uma vez comentou, resta aos analistas fazer dessa memória uma história diferente e demonstrar o lugar da Psicanálise neste nosso mundo. Há muito para ser feito. Estejamos atentos e que haja talento e decisão.
O Estado de São Paulo 24 setembro de 1991, p 2.
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