Jogando a Realidade Seis anos depois do marco inicial, os Alternate Reality Games provam que não são apenas um fenômeno passageiro por André Sirangelo asirangelo@yahoo.com.br
O telefone público à sua frente começa a tocar. Sobressaltado, você checa o relógio: exatamente na hora. Depois de dois toques, você tira o fone do gancho e uma calma e distante voz feminina responde ao seu titubeante "alô". "Não desligue", ela diz. "Eu tenho informações vitais a partilhar. Mas antes eu preciso que você prove que existe. Prove que é uma pessoa de carne e osso”. Igualmente misteriosa foi a recente investida da Capcom no pré-lançamento de Lost Planet, através de pistas ocultas no trailer, que levavam a uma série de sites conectados à trama do shooter para Xbox 360. O mesmo se pode dizer a respeito da descoberta de um certo cubo de metal enterrado no Reino Unido, pelo qual foi oferecida uma recompensa em dinheiro no site perplexcity.com. E o que dizer dos vídeos virais e sites estranhos que ocuparam os fãs da série Lost durante todo o verão americano de 2006? Todos esses fatos se conectam na esfera deste fenômeno silencioso chamado Alternate Reality Gaming, e a essa altura - compreensivamente - você deve estar se perguntando: o que exatamente é um ARG afinal? SIGA O COELHO BRANCO Para entender melhor é preciso voltar a 2001, quando o conceito de realidade alternativa foi oficialmente inaugurado. O marco zero se deu com a união da Dreamworks e da Microsoft na criação do ARG The Beast, ferramenta promocional do filme A.I. – Inteligência Artificial. Pistas nos anúncios da obra de Steven Spielberg levaram alguns curiosos a seguir uma trilha de websites fabricados para parecerem verdadeiros, o que logo se expandiu para uma rede de puzzles de dificuldade crescente, tomando forma também por meio de e-mail, fax e telefonemas, a serviço de uma complexa trama de assassinato e intrigas na comunidade científica. A birutice logo virou notícia e uniu em comunidades online milhares de aspirantes a detetive, definindo os preceitos do que se tornaria um novo gênero de experiência interativa: a utilização de meios de comunicação reais a serviço de uma trama fictícia recheada de enigmas que, na maioria das vezes, precisam de uma mente coletiva para serem resolvidos. O conceito-chave por trás de um jogo deste tipo é o fato de que em nenhum momento ele se declara como tal. Pelo contrário: o mantra de jogadores e de criadores (ou Puppet Masters, como são conhecidos) são cinco palavrinhas de arrepiar os pêlos: isto não é um jogo. E é aí que a coisa fica interessante. Ao se envolver num ARG, os jogadores se inserem numa fascinante mistura de ficção e realidade, de uma maneira de fazer inveja ao mais complexo dos Massive Multiplayer RPGs: não existe um ambiente de jogo delimitado, tampouco limites para a interação do seu “personagem”. E boa parte da graça é justamente A maioria desses jogos aproveita o caráter coletivo e as possibilidades quase infinitas para chegar a níveis de complexidade que nunca poderiam aparecer num game convencional. Exemplos de interação variam desde a quebra de um simples criptograma num anúncio de revista até a busca por um cartão de memória dentro de um Audi A3 em exposição num showroom, passando pela decodificação de milhares de coordenadas que levam a telefones públicos no meio do nada, programados para tocar e liberar as próximas pistas numa hora X. Some isso às inúmeras referências ao universo de autores como William Gibson, Philip K. Dick e Lewis Carroll - sem falar nos irmãos Wachowsky – e o resultado é algo tão fascinante e promissor que é difícil prever o que isso representa para o futuro dos jogos e da própria indústria do entretenimento. MELISSA O gênero já passou por difíceis testes num campo importante na visão de Puppet Masters e patrocinadores: a viabilidade comercial. Pouco depois do fim do jogo baseado em A.I., a Eletronic Arts empenhou-se em lançar algo parecido, reunindo as melhores características de um ARG numa trama de conspirações e terrorismo, mas com uma sensível diferença: uma taxa mensal cobrada dos jogadores. Sob o título de Majestic: The Game, o projeto afundou em pouco tempo, vítima do baixo retorno financeiro e da onda anti-terror que tomou os EUA após o 11 de setembro. Em 2002, outro jogo comercial envolveu, numa estratégia ainda mais ambiciosa, uma série de televisão da rede americana ABC e a promessa de um prêmio milionário em dinheiro para o vencedor de uma espécie de caça ao tesouro nacional. No entanto, Push, Nevada foi abortado muito antes do final, por falhas de planejamento e baixos índices de audiência do tal seriado. A maioria dos jogadores acabou por Até uma entidade artificial inteligente vinda do futuro invadir o site de uma criadora de abelhas de Napa Valley, Califórnia. Planejado pela mesma equipe por trás de The Beast, I Love Bees começou discretamente, com um post no blog de Dana, a sobrinha da tal apicultora da Califórnia, pedindo auxílio para descobrir por que o site da tia estava tão estranho. Pouco depois, em junho de 2004, o trailer de Halo 2 mostrou rapidamente as letras A história culminou numa missão de proporções imensas, envolvendo mais de 1400 orelhões, localizados via GPS, nos EUA, França, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, programados para liberar pedaços da trama na forma de gravações. Alguns jogadores chegaram a conversar ao vivo com Melissa, em diálogos parecidos com aquele ali do primeiro parágrafo. Desde então, os ARGs têm se mostrado eficientes meios de divulgação no mercado de games - e ido além. A alucinada mistura de hiperficção com subversão cibernética e online gaming foi acolhida por empresas na criação de campanhas publicitárias diferenciadas. Parcerias firmadas com estúdios especializados em campanhas imersivas, surgidos nos últimos anos, geraram ARGs como Who is Benjamin Stove, patrocinado pela General Motors; The Art of the Heist, projeto milionário concebido para a divulgação de um carro da Audi; e o massivo The Lost Experience, que teve como base o universo do seriado mais hype da TV americana e chegou até a revelar alguns segredos da trama. O sucessor oficial de I Love Bees foi o cinematográfico Last Call Poker, um ARG de dois meses de duração criado para promover o game de ação GUN e que, entre vários eventos curiosos, levou centenas de jogadores para torneios de pôquer disputados em cemitérios ao redor dos EUA. No Brasil algumas campanhas também tentaram seguir a onda. Foi o caso de 2084 (2084.mtv.com.br), jogo que envolveu espectadores da MTV contra um vírus do futuro a serviço de uma organização fictícia chamada Instituto Purifica. Atualmente, um grupo de ARGueiros brasileiros se dedica a desvendar um jogo aparentemente criado pelo Guaraná Antarctica, cujo site principal é o zonaincerta.com. A história gira em torno do sumiço de um funcionário da empresa e de uma conspiração para internacionalizar a floresta amazônica. CIDADE PERPLEXA Era uma questão de tempo até surgir algum modelo de ARG que pudesse se sustentar sem apelar para o mecanismo de assinaturas que levou ao fracasso de Majestic. Este novo modelo veio na forma do multifacetado Perplex City. O jogo ensaiou um começo em março de 2005, com uma série de anúncios nos classificados de jornais de diversos países, todos com o mesmo cabeçalho: “Perdido. O Cubo. Recompensa oferecida”. Fragmentos de textos inseridos nesses anúncios revelaram uma introdução a um mundo paralelo muito semelhante ao nosso. De alguma forma, o artefato conhecido como O Cubo tinha sido roubado do museu da Academia de Perplex City durante uma festa de gala, e tudo levava a crer que a organização envolvida no A equipe por trás de Perplex City criou uma forma de financiar o jogo ao mesmo tempo em que transportou o ARG para um novo meio: um card-game baseado em quebra-cabeças, todos de alguma forma ligados à mitologia da Cidade Perplexa. Deu certo. Quase dois anos depois, o game terminou sua primeira “temporada” com a descoberta do cubo enterrado num bosque da Inglaterra, no início de fevereiro. Uma etapa nova em folha está prevista para começar este mês [MARÇO], mas ainda não se sabe se haverá outro prêmio em dinheiro. Enquanto isso, novatos e veteranos aos poucos podem ir percebendo que, mais do que modismo de internet, os ARGs são uma forma totalmente nova de contar histórias. Alguns arriscariam dizer que eles são também uma etapa no caminho para a fusão, num futuro próximo, de virtualidade e realidade em games convencionais. Porém, com a velocidade com que o gênero caminha para longe da obscuridade, as viagens filosóficas vão ter que ficar para outra hora.
==== CITAÇÕES (boxes ao longo da matéria) ==== “Como criador, o que me fascina é achar novas maneiras de investir em histórias. Não é preciso muita imaginação para fazer um bando de websites falsos ou esconder algumas pistas no código-fonte. A chave é tornar o que você está criando parte de uma história envolvente e intrigante.” “Os ARGs que acompanham outros games ou filmes serão cada vez mais vistos como parte daquela história, e cada vez menos como marketing. Acredito que quem jogou I Love Bees e se viu parte daquele mundo se recorda da experiência quando senta para jogar Halo 2. ” “Contadores de histórias sempre souberam que aumentar a crença do público numa trama proporciona uma experiência mais intensa. Se Orson Welles estivesse vivo, ele estaria criando um ARG.”
==== BOX 1 ==== O que é preciso para jogar um ARG - Atenção aos detalhes - Pesquisa - Espírito de grupo - Cara de pau - Fontes confiáveis
==== BOX 2 ==== Precursores dos ARGs - Guerra dos Mundos - A Bruxa de Blair - Vidas em Jogo - Os Beatles |